Marco Pigossi: 'Entre parafusos, livros, pneus e roteiros, sigo carregando um largo e incompreensível sorriso'


RIO - Acelera, troca de marcha, curva a 300 metros, outra a 500 metros, reduz a marcha, olha que vista, buraco, curva a cem metros, troca a marcha, que lugar lindo...
Uma estrada, você, a moto, e nada mais.

É mais ou menos isso que acontece quando se está em cima de uma moto. Aquelas horas ou minutos que passamos e temos a liberdade de não pensar. Não se tem tempo para autorreflexões, críticas, elogios, planos de um futuro perfeito, celular ou internet, e não podemos levar o stress junto, pois a bagagem é reduzida e em algum momento você vai perceber que ele ficou no caminho. O futuro é ali na frente e que assim seja para sua própria sobrevivência.

Refletindo sobre minha própria história e como tudo começou, arrisco ir um pouquinho além. Acredito ainda que a moto teve grande influência na escolha da minha profissão. Ator. Explico: depois de um hobby como este, que outra profissão eu poderia escolher!? Que outra profissão existe que é uma eterna aventura, que não se repete nunca, que não é feita por obrigação mas por simples prazer e amor, que se brinca o tempo todo, que assim como a moto usa de meios alternativos, caminhos diferentes e inexplorados para se chegar a algum lugar, que é instigante e caótica ao mesmo tempo, inconstante e firme, bela e vulgar, perigosa e inofensiva?

Se aventurar na vida artística através de Rilke é como fazer aulas de direção. Você pode até fazer depois de velho, mas é quando jovem que tudo irá fazer mais sentido e você terá mais tempo de entender que nem sempre o jovem poeta está errado e que algumas coisas, diferente do que seu professor de direção ensinou, são mais práticas. Passeamos por Grotowsky, Stanislavski e Meyerhold entendendo que eles são fundamentais, assim como aquela moto enorme que tínhamos no pôster na parede do quarto quando crianças, mas às vezes percebemos que o verdureiro ou o padeiro do seu bairro podem ser mais valiosos para a construção de um personagem. Do mesmo jeito que uma pequena scooter pode se sair melhor num trânsito caótico de cidade grande. Buscamos Euclides da Cunha e o Grande Guimarães e seus sertões para se chegar a algo que se aproxime de um Chicó de Ariano Suassuna, não pegamos o caminho mais fácil e óbvio. Enlouquecemos no processo de ensaios e na criação. Mergulhamos, arriscamos estradas que não conhecemos e não sabemos aonde ela nos levará, não importa! O caminho é sempre mais gostoso que chegar. Chegar é o fim, e você não quer que acabe.
Entre motociclistas, independente da moto que tenha ou para onde vai, se usa couro ou poliéster, há uma solidariedade, ou mais, uma relação de fraternidade. Quando se cruzam em estradas, se cumprimentam, se ajudam e trocam dicas e informações. São as mais variadas tribos, e temos a impressão de que todos em algum momento de suas vidas cruzaram com Nelson Rodrigues, e eliminaram todo e qualquer tipo de preconceito, aceitando a vida como ela é.

E no meio desse caos em que vivemos, continuo sabendo que tenho não exatamente aonde ir, mas por onde ir. Entre parafusos, livros, pneus e roteiros, sigo carregando um largo e incompreensível sorriso no rosto, por ter escolhido a moto e o teatro como estilo de vida.

Marco Pigossi é protagonista da novela "Boogie Oogie" e o colunista convidado deste domingo da Revista GLOBO

Fonte: O Globo.

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